A novela Laurus como manifesto do tradicionalismo russo

A novela Laurus como manifesto do tradicionalismo russo

Por Daria Dugina

O romance-vida, um ‘romance não histórico’ como o chama o autor Evgeny Vodolazkin (doutor em filologia, especialista em literatura russa antiga), é uma descrição do destino e do desenvolvimento interior de Arseny, o curador. Depois de receber treinamento médico de seu avô Christopher, Arseny entra na vida com todas as suas complexidades, tentações e provações. Desde o início, o perfil de Arseny revela um homem chamado no espírito e marcado por um dom especial, um carisma fora do comum. Ele é mobilizado por um poder superior para servir as pessoas. Ele não é deste mundo, mas serve as pessoas deste mundo. Já nisso podemos ver a trama do sofrimento e da dor.

Durante uma praga, Ustina, uma menina pobre cuja aldeia foi atingida por uma epidemia, chega à casa de Arseny. O jovem curandeiro acolhe-a como acolhe todos os necessitados de ajuda e socorro, os que estão aflitos e não têm para onde ir nem a quem recorrer. Arseni a deixa entrar em sua casa, acolhe-a, dá-lhe abrigo e… eles crescem juntos. Demais. E acima de tudo – sem o sacramento da igreja obrigatório para um homem da Velha Rússia. Isso significa que sua união é pecaminosa e traz consigo dor, sofrimento, morte e um fim sombrio. Ustina fica grávida, mas por medo de censura e reprovação, Arseni não a leva ao casamento. Além disso, não está claro como explicar que ela foi salva da peste. Então o amor acaba sendo um pecado, a criança é fruto de uma queda,

E assim acontece o pior. Ustina morre durante o parto excruciante, o bebê nasce morto. Arseny quase enlouquece de dor e ao saber de sua cumplicidade no horror ocorrido. Ustina e seu filho natimorto, que não foi batizado, nem mesmo merecem um funeral adequado pelos padrões da época; a mulher em trabalho de parto não era casada e a criança morreu sem ser batizada. Ambos estão enterrados no Bogedomk, um lugar especial fora dos cemitérios cristãos onde são jogados os cadáveres de vagabundos, ophi, feiticeiros e palhaços. Junto com Ustin, morre o Arseni anterior e nasce um novo, Ustin, que toma como nome a versão masculina do nome de sua amada, sua vítima e seu pecado. Assim o herói inicia seu caminho: o caminho do arrependimento,

Arseny-Ustin mais tarde se tornou um famoso fitoterapeuta e curandeiro, sua fama se espalhando por toda a Rússia. Mas isso é apenas uma etapa. Então chega a hora de uma nova ‘transição’. E ele se move ao longo da cadeia de antigas figuras espirituais russas: louco, velho, profeta. O louco Thomas dá um novo nome ao herói – a partir de agora é Amvrosy, e por sua vez ele empreende a façanha da loucura, alcançando a santidade e a impassibilidade na humilhação voluntária e no comportamento atípico – às vezes provocativo.

Segue-se uma peregrinação a Jerusalém com o monge italiano Ambrósio e, ao retornar da árdua jornada, a assunção do posto de monge e assim por diante, até a mais alta ordem monástica, o esquema. Assim, de Arseny Ustin nasceu Laurus – da dor da alma, vendo o corpo de sua amada Ustin lançada na deusa; de testemunhar a morte do monge Ambrósio; de observar os elementos durante as tempestades, nas quais pereceram os marinheiros; da injustiça geral do mundo e do pântano que cobria as terras russas (e não russas); dos infinitos espaços e almas russas, além da compreensão dos estrangeiros e dos próprios russos.

“Que tipo de pessoa você é”, diz o comerciante Siegfried. – Um homem cuida de você, ele dedica toda a sua vida a você, você o atormenta a vida toda. E quando ele morre, você amarra uma corda em seus pés e o arrasta, e você está em lágrimas.

– Você está em nossa terra há um ano e oito meses,’ diz o ferreiro Averky, ‘e você não entendeu nada disso.
– E vocês mesmos entendem isso? – pergunta Siegfried.
– Nós? – O ferreiro hesita e olha para Siegfried. – Nem, é claro, nós mesmos entendemos.

Marcos da vida humana Tradições
Arseny – Ustin – Amvrosii – Laurus

A vida de Laurus, que na sua hagiografia se divide em vários ciclos – infância/juventude/maturidade/velhice e ‘sannyasa’ (a vida de um eremita que renuncia completamente ao mundo) – a vida de um homem da Tradição.

Na descrição da vida ascética de Laurus, o cânone indo-europeu da vida de um homem de tradição (vividamente descrito no Manu-smriti e outras escrituras hindus) que luta pela libertação, consistindo em quatro ciclos, é manifestado. O romance, como a vida de Laurus, é dividido em quatro partes: ‘O Livro do Conhecimento’, ‘O Livro da Renúncia’, ‘O Livro do Caminho’ e ‘O Livro do Descanso’. De acordo com os Upanishads, a libertação se torna possível se a pessoa viver os três ashrams (três estágios da vida) com dignidade:
1) Estudo dos Vedas, discipulado (brahmacharya) – o primeiro estágio da vida de Arseni – aprendendo com a sabedoria de seu avô Christopher
2) Casa e sacrifício pela esposa e família (grihastha) – família de Arseniyya, morte de Ustina e posterior aceitação dela em si mesma – diálogo constante com o amante falecido 3) Os anos
de eremitério na floresta (vanaprastha) – tanto herculeanismo quanto peregrinação e a jornada para Jerusalém
4) O último período do ashram (sannyasa) – associado no hinduísmo ao afastamento dos assuntos mundanos e devoção total ao desenvolvimento espiritual, é um período de meditação e preparação para a morte. Na tradição hindu, era muito importante morrer sem lar, nu, sozinho, um mendigo desconhecido. É assim que Laurus morre, após ser caluniado.

É importante notar que em cada uma dessas fases da vida na Tradição houve uma mudança de nome. Assim, nós, leitores, presenciamos uma sequência de 4 personagens – Arseny, Ustin, Ambrosius e Laurus – cada um manifestando 4 estágios diferentes da formação humana na tradição indo-européia.

“Já fui Arseny, Ustin, Ambrosius e agora sou Laurus. Minha vida é vivida por quatro pessoas diferentes, com corpos e nomes diferentes. A vida é como um mosaico e se desfaz”, diz Laurus.

Ser um mosaico não significa desmoronar, respondeu Inocêncio. Você quebrou a unidade de sua vida, abriu mão de seu nome e identidade. Mas mesmo no mosaico da sua vida há algo que une todas as suas partes separadas, é a aspiração a Ele (Deus – nota do autor). Nele eles serão reagrupados’, responde o Élder Innocent.

Quatro vidas, fases, imagens, rostos-personalidades diferentes se fundem em um só rosto. A passagem dos quatro estágios da vida no romance é a ascensão sucessiva do homem do mais baixo ao mais alto, da manifestação material à mais alta realização – o sacramento teúrgico. O que é descrito em Laurel é a experiência neoplatônica do retorno da alma à sua fonte, o Bem, o Uno. O romance pode ser considerado no esquema neoplatônico da ascensão da criação à sua fonte inefável.

Esses quatro períodos da vida do protagonista também têm uma dimensão social, de casta: a ascensão de um estágio para o seguinte é também uma mudança de status social. De discípulo a ‘marido’, de ‘marido’ a eremita, de eremita a monge e eremita. Tudo isso é um movimento ao longo do eixo vertical dos estratos sociais: enquanto na primeira parte Arseny tem uma casa, livros, ervas e um pequeno território, no final do livro ele não tem paredes e seu refúgio são as abóbadas de pedra, as árvores e a floresta. Assim, passando para uma nova fase, Arseny também se separou dos livros de Christopher. O novo herói, o filósofo e guardião, não está apto a ter nenhuma propriedade privada. Ele não pode ter nada, porque a posse de algo significa enfraquecer a tensão da contemplação do alto. No final do romance, Laurus não tem nada, toda a sua comida é de pássaros e animais, ele não pertence mais a si mesmo. Ele pertence ao Absoluto.

O problema do tempo e da eternidade no romance Laurus

Um dos temas principais do romance é o problema da interpretação do tempo: o tempo material em Laurus, seguindo tópicos platônicos, é entendido como “o simulacro móvel da eternidade”. Duas dimensões parecem coexistir no romance: um tempo linear que conduz ao fim (a linha escatológica do romance vem do Ocidente – Ambrósio vem à Rússia para encontrar a resposta para a questão da data do fim do mundo), uma dimensão judaico-cristã e uma dimensão eterno-mitológica, com origem na tradição antiga, que no cristianismo se tornou uma dimensão do ciclo circular do culto, que simultaneamente surge em espiral e se transforma em paradoxo: Acontecimentos reprodutíveis – as festas de a Igreja – que ocorrem ‘de novo’ a cada vez, tornam-se realidade como se nunca tivessem acontecido antes. Cada vez, eventos semelhantes em significado parecem diferentes (uma conversa entre Laurus e o ancião Innocent: ‘Porque eu amo geometria, eu comparo o movimento do tempo a uma espiral. É uma repetição, mas em um nível novo e mais alto’). Mesmo a própria narrativa, a vida de Arseni Arseny nos reproduz a espiral – muitos eventos no romance são semelhantes, mas cada vez eles ocorrem em um novo ‘nível superior’ (por exemplo, no final de sua vida – Arseny, ex-Laurus, dá nascer de novo, desta vez a mãe em trabalho de parto não morre e o bebê sobrevive).

‘Existem eventos semelhantes’, continuou o ancião, ‘mas dessa semelhança vem o oposto. O Antigo Testamento é inaugurado por Adão, mas o Novo Testamento é inaugurado por Cristo. A doçura da maçã comida por Adão revela-se a amargura do vinagre bebido por Cristo. A árvore do conhecimento leva o homem à morte, mas a árvore da cruz dá ao homem a imortalidade. Lembre-se, Amvrosius, que a repetição nos é dada para vencer o tempo e nossa salvação.

A coexistência das duas dimensões – temporal e eterna – também é evidente na própria estrutura da narrativa: em Lavra, as descrições da vida medieval russa se entrelaçam intrinsecamente com episódios contemporâneos, o protagonista vive com os mortos – ele fala constantemente com eles , discute-os, fala sobre suas experiências. Essa estrutura está amplamente relacionada aos romances pós-modernos. Vodolazkin é certamente um pós-modernista em sua técnica. No entanto, ao preencher a ‘colagem’ com enredos de diferentes marcos, ele coloca os profundos significados tradicionalistas acima da técnica. No romance, a coexistência de várias épocas é mostrada de maneira particularmente sutil e vívida: nos encontramos na Rússia medieval, depois nos movemos para o mundo moderno com pesquisadores, amantes de livros e historiadores, então nos encontramos testemunhando a terminologia soviética – Vodolazkin conseguiu, de maneira muito inteligente e orgânica, mostrar o sincronismo, a existência paralela de várias épocas e dimensões. Assim como diferentes fatias de tempo coexistem no romance, também em nós hoje existe tanto o arcaico quanto o futuro. Nós hoje somos nossos ancestrais, observando o mundo em rápida mudança através de nossos olhos e nossos futuros filhos.

O romance ‘Laurus’ é um manifesto em larga escala do tradicionalismo russo, uma personificação do paradoxo russo da coexistência do tempo e da eternidade em nós, desse cânone indo-europeu de hagiografia vestido de znakhar medieval, desse mito da eternidade voltar e cortar esse mito com a flecha do tempo, rumo ao fim do mundo. ‘Laurel’ é um manifesto do movimento vertical. Aquele que esquecemos por trás do frenesi da vida cotidiana. E isso se manifesta tão claramente em tempos de pestilência. Antes e agora.

“Não é Cristo a direção geral?” perguntou o ancião. Que direção você ainda está procurando? E não se deixe levar pelo movimento horizontal além da medida. E de quê?” perguntou Arsênio. Movimento vertical, respondeu o ancião e apontou para cima. 

Tradução de Guilherme Fernandes

Fonte: https://www.geopolitika.ru/en/article/novel-laurus-manifesto-russian-darya

Guilherme Fernandes

Guilherme Fernandes

Membro da Resistência Sulista e Dono do blog Tierra Australes. Também um ativista ferrenho pela reunificação do Uruguai e do Rio Grande do Sul como uma só pátria sob o estandarte de José Artigas.

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