Das operações especiais à guerra das civilizações: A avaliação de Aleksandr Dugin sobre o ano passado

Por Mark Siira
Um ano se passou desde o início da operação militar especial da Rússia na Ucrânia. Segundo o cientista político Aleksandr Dugin, com sua operação militar, a Rússia “entrou em uma guerra difícil e de grande escala”, não tanto com a Ucrânia, mas sobretudo com o “Ocidente coletivo”, ou seja, o “bloco da OTAN” (com exceção da Turquia e da Hungria, que permanecem neutras no conflito).
Na opinião de Dugin, o ano de guerra destruiu muitas ilusões de todas as partes no conflito. Dugin não tenta apresentar as coisas da melhor maneira possível, mas também está ciente dos erros cometidos pela Rússia. Enquanto os relatórios acadêmicos ocidentais dificilmente questionam as ações do regime e militares ucranianos, a análise de Dugin é abertamente crítica da liderança militar russa.
Os erros do Ocidente e da Rússia
O erro de cálculo do Ocidente esperava ingenuamente que as sanções econômicas contra a Rússia derrubassem o regime de Putin. “Apesar das ilusões do Ocidente, a economia russa resistiu, não houve protestos internos em larga escala e a posição de Putin não foi prejudicada, mas fortalecida”, diz Dugin.
Desde o início do conflito, a Rússia, percebendo que as relações com o Ocidente se desintegravam, deu uma guinada acentuada em direção aos países não ocidentais – em particular China, Irã, países islâmicos, mas também Índia, América Latina e África – e Ele claramente e declarou resolutamente seu objetivo de criar um “mundo multipolar”.
“Em parte, a Rússia já estava tentando afirmar sua soberania, mas de forma hesitante, nada coerente, constantemente voltando às tentativas de se integrar ao Ocidente globalizado. Agora essa ilusão finalmente foi frustrada e Moscou simplesmente não tem escolha a não ser seguir construindo uma ordem mundial multipolar”, diz Dugin.
No entanto, mesmo os planos da Rússia não correram conforme o planejado, critica Dugin. Ele afirma que o plano era, na verdade, atacar rápida e preventivamente a Ucrânia, sitiar Kiev e forçar o regime de Zelensky a se render. Moscou teria então colocado no poder um político local moderado (alguém como Viktor Medvedchuk?) e começado a restabelecer relações com o Ocidente (como aconteceu após a anexação da Crimeia).
A alegação de Dugin contradiz as declarações oficiais russas de que a captura de Kiev nunca foi o objetivo principal da operação especial, enquanto Dugin culpa a má liderança e planejamento militar e a falta de uma verdadeira mentalidade de combate pelo fracasso na captura de Kiev no início fases da operação.
“Tudo deu errado”, insiste Dugin. Houve grandes erros no planejamento estratégico de toda a operação especial. O clima calmo dos militares, da elite e da sociedade – despreparados para um confronto sério com o regime ucraniano, sem falar no Ocidente coletivo – contribuiu para as complicações.
“A ofensiva estagnou enfrentando uma resistência desesperada e feroz de um adversário apoiado pelo apoio sem precedentes da máquina de guerra da OTAN. O Kremlin provavelmente não levou em conta a prontidão psicológica dos ucranianos para lutar até o último ucraniano, nem a extensão da ajuda militar ocidental. “, explica Dugin.
A Rússia também não entendeu totalmente “os efeitos de oito anos de propaganda intensiva, que alimentou a russofobia e o nacionalismo histérico extremo dia após dia na sociedade ucraniana”.
Fases do primeiro ano da guerra
Dugin entende que os amigos e aliados da Rússia estão parcialmente desapontados com o primeiro ano da operação militar especial. Provavelmente muitos pensaram que as capacidades militares russas seriam tão importantes e aprimoradas que o conflito ucraniano seria resolvido com relativa facilidade e rapidez.
Nos primeiros dois meses, a Rússia fez progressos rápidos. No entanto, após uma defesa feroz da Ucrânia e negociações de paz fracassadas, o ritmo diminuiu. No verão de 2022, ocorreu um impasse na frente, juntamente com atos de terror ucranianos que se espalharam pela Rússia.
Os contra-ataques ucranianos foram bem-sucedidos com equipamentos modernos da OTAN e a Rússia retirou-se de Kharkiv e Kupyansk. Seguiu-se outro aperto, foi declarada uma mobilização parcial e foram realizados referendos em Donetsk, Luhansk, Zaporizhia e Kherson sobre a anexação dessas regiões à Federação Russa.
A Rússia estabeleceu uma nova marcha, mas o progresso continua lento. Isso se deve à resistência do Ocidente armado pela OTAN ou a Rússia está travando uma “guerra de desgaste” deliberada para destruir os recursos do Ocidente da OTAN?
A derrota da Ucrânia, a vitória da Rússia?
Aconteça o que acontecer no futuro próximo, a Ucrânia de hoje já está condenada. A Rússia busca a derrota do regime fantoche pró-ocidental de Kiev. Dugin tem certeza de que no futuro a Ucrânia deixará de existir como um estado nacional e independente (com a operação de mudança de poder de Maidan no Ocidente, isso já aconteceu na realidade).
Apesar de suas declarações odiosas, o Ocidente não tem motivos para levar o conflito ao extremo. Mesmo que o Ocidente perca toda a Ucrânia, já ganhou muito, e não se espera que a Rússia represente uma ameaça crítica para os países europeus da OTAN, muito menos para os Estados Unidos. “Tudo o mais que é dito neste contexto é pura propaganda”, diz Dugin.
A Rússia não pode aceitar nada menos do que a libertação de Donetsk, Luhansk, Zaporizhia e Kherson e a preservação da Crimeia. Dugin chama isso de opção de “ganho mínimo”, mas imediatamente diz que é uma solução inadequada. A “vitória do meio” seria a libertação de toda a “Novorossiya”, incluindo Odessa, Kharkiv e Nikolayev.
Uma “vitória total” russa libertaria toda a região ucraniana e restauraria a unidade histórica da superpotência eurasiana. Isso significaria abolir o estado de toda a atual Ucrânia (originalmente uma invenção russa) e reunificar a antiga Rus de Kiev com o resto da Rússia.
o choque de civilizações
À medida que o conflito na Ucrânia esquenta, a Rússia não trata mais o Ocidente como um “parceiro”, mas vê a aliança como uma ameaça à sua existência. A Rússia mudou seu paradigma do realismo político para uma teoria de um mundo multipolar, rejeitando o liberalismo e desafiando a civilização ocidental moderna, negando seu direito de ser universal, abrangente.
A operação militar especial acabou sendo um desastre para o segmento liberal da classe dominante russa, que não gostaria de tal confronto com o Ocidente. Um ano depois, a situação piorou ainda mais e não há como voltar atrás. Até os oligarcas se tornaram patriotas ou fugiram do país.
Ficou claro que a Rússia está em guerra com toda a civilização liberal ocidental moderna e com os valores que o Ocidente tenta impor ao mundo inteiro. “Esta mudança na consciência russa da situação mundial é talvez o resultado mais importante da operação militar especial”, sugere Dugin.
A defesa da soberania tornou-se um choque de civilizações. A Rússia não mais defende um regime político que, apesar de suas diferenças, compartilha atitudes, critérios, normas, regras e valores ocidentais, mas atua como uma civilização independente, com atitudes, critérios, normas, regras e valores próprios.
Não é exatamente isso que Putin tem proclamado em seus discursos, lançando as bases para uma política de proteção dos valores russos que não apenas diferem significativamente do liberalismo, mas de certa forma são exatamente o oposto dele? Isso, pelo menos, é o que Dugin parece pensar.
Todo o mandato de Putin foi, na opinião de Dugin, “uma preparação para este momento decisivo”, mas antes do início da operação especial, a liderança da Rússia permaneceu enquadrada pelo realismo político de estilo ocidental.
Agora, após um ano de provações e terríveis sacrifícios, o padrão mudou: a Rússia sabe que é um Estado civilizado com identidade própria, que a elite dominada pelo Ocidente quer destruir.
À medida que o conflito na Ucrânia se arrasta, as contradições internas no Ocidente só aumentam. A operação militar especial da Rússia está destruindo não apenas os soldados ocidentais e ucranianos da OTAN, mas também a camada liberal da sociedade russa. A Rússia está emergindo como uma força contrária crível à ordem ocidental. Quem sabe, talvez em algum momento o Ocidente tenha que seguir o exemplo de Moscou, e não o contrário.
Tradução de Guilherme Fernandes