O ABC dos valores tradicionais: Misericórdia

O ABC dos valores tradicionais: Misericórdia

Por Konstantin Malofeev
Protopadre Andrew Tkachev
Alexander Dugin

Konstantin Malofeev : Outra parte do ‘ABC dos valores tradicionais’ é sobre misericórdia. Estamos falando da letra “M” [Nota do editor: em russo, “misericórdia” se chama miloserdiye, em cirílico милосердие].

Protopadre Andrei Tkachev : A primeira coisa que vem à mente com esta palavra é

“Abre-nos as portas da misericórdia, Santa Mãe de Deus,

para que nós que esperamos em Vós não pereçamos,

mas que Tu nos livre de nossos problemas,

Pois Tu és a salvação da raça cristã.

Recordamos também a máxima do Evangelho, onde Ele nos convida a ser como o Pai e menciona apenas uma virtude: ‘Portanto, sede misericordiosos, como vosso Pai é misericordioso’.

Nossos empreendimentos de jejum, abstinência, outras privações, peregrinações a pé, são todos bons em sua medida. Mas, claro, uma pessoa será testada por obras de misericórdia, como sempre dizemos, ao nos aproximarmos da semana do Juízo Final. Se ele se alimentou ou não, se ele se vestiu ou não, se ele foi para o hospital ou não, e assim por diante. Esses axiomas, essas coisas simples são um indicador de como é o seu coração.

Porque um coração humano pode ser um coração de cachorro ou pode ser um coração de porco. O coração mais assustador nem é um coração de pedra, porque a pedra emite sons. No Oriente, diz-se que o coração mais terrível é o de feltro. Ele abafa os golpes, não emite nem um som. E é necessário ter um coração misericordioso. A palavra-chave é ‘coração’. Um coração bondoso. Então, é a dor do coração misericordioso, de acordo com Paisios [Nota do editor: ele está se referindo ao Padre Paisios do Monte Athos, um monge cristão ortodoxo grego que morreu no conceito de santidade em 1994]: se o coração de uma pessoa sofre porque do infortúnio de outra pessoa, então o Senhor chega a esse ponto de tristeza.

É uma coisa cultivada, uma coisa conscientemente cultivada, que de fato ainda não está pronta no homem e que pode ser cultivada nele como uma espécie de escada de perfeição. Blaise Pascal disse que toda a matéria do mundo não dá origem a nenhum pensamento. Todos os grandes pensamentos coletados do mundo são menos do que uma ação misericordiosa, a batida de um coração misericordioso. É disso que se trata a vida. A vida é viver.

Ou seja, continuamos vivos, não por nada, mas apesar de tudo, e a única justificativa para continuarmos a viver, pois a luz que brilha nas trevas, é que a misericórdia não deixou o mundo. Se você se afastar silenciosamente e fechar a porta atrás de você, a partir daí as pessoas vão começar a comer umas às outras e você não quer viver para ver isso acontecer. Eu gostaria que a misericórdia não deixasse o mundo.

Alexander Dugin : A misericórdia é um fenômeno muito importante, não tem medida. Se a justiça pode ser medida – olho por olho, dente por dente – a misericórdia não pode ser medida, porque é sempre algo mais. É sempre excessivo. Isso é, em certo sentido, imerecido. Falamos de misericórdia, por exemplo, quando poupamos um inimigo derrotado. Talvez, do ponto de vista da justiça, ele devesse ser punido ou mesmo executado, mas temos pena dele, e aí reside a misericórdia imerecida. Esta é a base do cristianismo.

Afinal, Deus se entrega ao tormento, à morte, imerecidamente. Ele sofre pela humanidade, salva a humanidade imerecidamente. Não merecemos este sacrifício, este sofrimento de Deus. E, no entanto, está lá. E este é o ponto de referência ético mais importante. Parece-me que não há nada mais elevado do que isso. É como o amor, que não inveja, que não quer nada em troca. É como um presente. Apenas um presente, sem dar. É um dom que se estende a todas as normas da sociedade cristã.

Quando dizemos que a caridade é um valor, orientamos toda a nossa vida de maneira diferente. Descobrimos que não devemos ser egoístas, nem mesmo racionais ou justos, mas algo mais. A misericórdia supera a justiça. Mesmo nos sistemas teológicos, a justiça é o lado duro, a mão esquerda de Deus, enquanto a misericórdia é a mão direita. É a mão direita abençoada que nos é dada como algo que não merecemos.

Quando percebemos quão grande é essa qualidade, nosso coração se amolece, ela se expande dentro de nós. Pois percebemos que obtivemos algo que não deveríamos ter obtido. E se permanecermos tão velhos quanto antes, se nosso coração, como você diz, padre Andrey, é feito de pedra ou feltro, como podemos nos chamar?

É simplesmente vergonhoso o quanto recebemos e o pouco que damos. Fazer da caridade um valor da política do Estado não é uma questão de atos individuais de autoajuda. Trata-se de mudar todo o sistema de valores. Trata-se de trazê-lo de volta à cosmovisão cristã russa, que é nossa essência, nossa base, nossa profundidade.

KM : A compreensão cristã do mundo diz que a misericórdia é superior à justiça, e isso contradiz completamente todos os princípios legislativos. A lei é matemática: tem que seguir o que ela diz ao pé da letra, e quando tínhamos ortodoxia na lei, também tínhamos misericórdia. Até 1917. Foi então que ocorreu um caso tão conhecido de livro didático, quando o advogado Plevako venceu o caso em um minuto.

Como isso aconteceu? Plevako estava sentado com outro advogado, eles tiveram que aceitar clientes gratuitos. Esta é uma prática comum hoje e antes da revolução. Na época, Plevako já era um advogado famoso. E escreveu: ‘Em três minutos, vou ganhar a causa’. E quando trouxeram o padre, que era o réu, ele escreveu: ‘Um minuto’.

O padre foi acusado de roubar algo de um copo na igreja. Glewko saiu e disse: Senhores do júri, ele perdoou seus pecados por tantos anos, perdoem-no também. Isso foi o fim de tudo.

No entanto, eles poderiam ter perdoado. Agora não existe mais tal coisa. Com o retorno da palavra ‘misericórdia’ nos Fundamentos de nossa política estadual, deve haver muitos desenvolvimentos positivos em termos de reforma da lei. Se quisermos seguir este princípio, é claro. Porque neste momento, até o juiz tem muito pouco ‘garfo’ na tomada de decisões.

O juiz escolhe entre uma medida maior ou menor, um prazo maior ou menor. Se temos a misericórdia como princípio, significa que ela deve ser demonstrada em tudo.

Então, quando um responsável chega em uma casa e vê que uma criança vive na pobreza, mas tem uma mãe que trabalha em três empregos para sustentá-lo e uma avó que cuida da criança, ele não abre a geladeira e verifica quanto suco está nela, mas pensa com compaixão em como ajudar aquela família, não em como tirar a criança deles. O mais importante em sua mente deve ser sua atitude para com a criança, para com esta família. E se o comissário militar está recolhendo as pessoas mobilizadas, não está pensando em como denunciar às autoridades, mas no que fazer para manter essas pessoas no terreno. Porque ele não sabe, ou seus superiores não lhe disseram, para onde levá-los a seguir.

Todas essas qualidades devem entrar em nosso estado e vida pública com a palavra ‘misericórdia’. Porque, como dissemos antes, os valores espirituais e morais russos tradicionais são valores cristãos e evangélicos. E misericórdia é, claro, a palavra do Evangelho.

AT : Você se lembra do que Anton Pavlovich Chekhov escreveu? “É necessário que na porta de cada pessoa feliz e contente haja alguém com um martelo, lembrando-lhe constantemente, batendo, que existem pessoas infelizes, que por mais feliz que seja, mais cedo ou mais tarde a vida lhe mostrará o seu garras, a catástrofe o atingirá – doença, pobreza, perda, e ninguém o verá ou ouvirá, pois ele não pode ver ou ouvir os outros agora.

A imagem do mundo criada pelo coletivo hollywoodiano nos mostra uma ilusão de paraíso, uma espécie de devaneio narcótico. Os jogos de computador servem ao mesmo propósito. Eles criam uma espécie de devaneio em que uma pessoa, por engano, por uma porta dos fundos, entra por um tempo em um paraíso perdido ilusório. Na realidade, a verdade é que existe um verdadeiro paraíso, mas é preciso chegar lá por meio de uma tragédia terrena. A vida já é bastante trágica mesmo sem guerras. Um câncer e um divórcio são suficientes para lamentar esta vida com lágrimas amargas. E é por isso que devemos ser educados na compaixão.

Um rabino me disse que, se uma dívida foi paga por mim, posso amar legitimamente essa pessoa. Se fui salvo por uma faca ou um valentão, amarei meu salvador com razão. Mas não fizemos nada para que Deus nos amasse, e seu amor por nós é incompreensível, está além da lógica, não é motivado por nada; e devemos ser como Ele. Portanto, é necessário ter compaixão por aqueles que sofrem. Tem piedade dos caídos, com os que choram choramos, com os que se alegram nos alegramos. Todos os alunos e alunos do ensino médio sabem que existem prisões no mundo. E uma viagem a uma prisão lhes dará mais informações sobre a vida do que um mês inteiro sentado em uma mesa.

Meninas e meninos também devem saber que existem internatos geriátricos, hospitais, centros de reabilitação e enfermarias infantis de câncer no mundo. Tudo isso deve ser incluído no sistema educacional de uma pessoa. Porque ele deveria ver o quanto o mundo está sofrendo. Vivemos dentro da própria ferida. “A ferida do mundo passou por mim e a vida está viva independentemente da minha vontade”, disse Tarkovsky. É possível trazer à vida uma profunda tristeza sobre a dor do outro – com o ‘enxerto’ do evangelho.

O que é misericórdia? É a minha dor pela dor do outro. E este é o caminho da semelhança com Deus.

AD : A propósito, aqui também podemos incluir uma noção como misericórdia…

NO:

Eu imploro piedade e misericórdia, França,

tua terra e madressilva, –

escreveu Osip Mandelstam. Misericórdia e misericórdia estão lado a lado.

AD : Entre nós, a palavra ‘misericórdia’ assumiu uma espécie de significado negativo. “Ser misericordioso é vergonhoso”. “A misericórdia é degradante”. “Não se deve ter pena de ninguém”. Por que não se deve ter pena? Por que não ter pena de alguém que está doente, que sofre, que está privado de alguma coisa? Nesta piedade, o coração é amolecido. O coração se torna misericordioso, humano. A propósito, é interessante que em nossa língua antiga as palavras ‘misericórdia’ e ‘paz’ tenham a mesma raiz.

Para nós, povo russo, na raiz de nossa compreensão do que é a paz, há algo doce. Ou seja, algo suave, harmonioso, imbuído de graça. Foi dito aqui que a misericórdia rejeita a lei. Mas na consciência russa sempre houve certo e verdade. Existe lei – é uma adesão formal estrita à lei, que também deve ser, caso contrário, tudo será destruído. Mas sempre houve algo ainda mais elevado: a verdade. E a misericórdia pertence ao registro da verdade.

KM : Vem do direito antigo, do direito cristão. “A verdade russa é derivada do Epanagoge bizantino. E o Epanagoge é uma edição posterior dos romances do Imperador Justiniano. E no sexto romance de Justiniano, é claramente afirmado que em caso de discrepância entre as regras da lei e o Cristão, regras evangélicas, valem as regras evangélicas, este é o verdadeiro espírito da lei.

Agora, isso permanece na teoria do estado e do direito apenas na forma em que as normas morais são mais amplas do que as normas legais. Ou seja, por exemplo, as normas de moralidade dizem que xingar é ruim; mas, de acordo com a lei, palavrões não são permitidos apenas na mídia. Não é bom ofender crianças pequenas. A lei, porém, diz: é proibido ser pedófilo, é proibido machucar criança. É por isso que os padrões morais são mais amplos do que os legais.

Estamos cientes disso. Mas de onde vem essa construção jurídica teórica, todo mundo já esqueceu. Foi Justiniano quem disse que as normas cristãs, dadas pelo próprio Deus, são sempre superiores. É por isso que a palavra ‘misericórdia’ é a saída do perímetro legislativo indireto, fechado, materialista e secular para o mundo real, onde reinam as leis de Deus. Porque a misericórdia é a lei de Deus, não a lei do homem.

AT : Confúcio, também nos lembremos dele hoje, disse que não conseguiremos restaurar a ordem no mundo se não dermos sentido às palavras. A compaixão não é vergonhosa. A misericórdia é nobre. Na verdade, o que estamos fazendo é devolver o sentido às palavras, estabilizar o universo, por mais patético que isso possa parecer.

KM : Estávamos falando sobre a palavra ‘misericórdia’. A letra “M”.

Tradução de Guilherme Fernandes

Fonte: https://www.geopolitika.ru/en/article/abc-traditional-values-mercy


Guilherme Fernandes

Guilherme Fernandes

índio gaúcho e vice-presidente da Resistência Sulista

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