Felipe Rotta: Tradição vs Tradição

Há um tempo vem crescendo o interesse em música erudita nos círculos ditos “tradicionalistas”
que buscam uma alternativa dissidente perante o caos político da atualidade. Em certo modo,
aquilo que se constrói de uma forma bem-intencionada, pode acabar sendo um caminho para
uma grande frustração e ruína, principalmente aos recém-chegados que abraçam um simulacro
vulgar de Tradição e não almejam um significado real e vivo, fazendo jus ao próprio conceito.
Escolhi a Música como tema central justamente por ser um fator muito mais presente no que diz
respeito à formação e o aprimoramento da Linguagem, mas definitivamente a tese também
adentra no campo de toda a Arte — principalmente na Literatura.
“Quando a tradição torna-se assim mestre, fá-lo de tal maneira que
o que ela transmite se torna tão inacessível, proximamente e na
maior parte, que antes fica oculto. A tradição pega o que chegou
até nós e o entrega como evidência; ela bloqueia nosso acesso às
‘fontes’ primordiais das quais as categorias e conceitos
transmitidos a nós foram em parte extraídos de maneira bastante
genuína. Na verdade, isso nos faz esquecer que eles tiveram essa
origem, e nos faz supor que a necessidade de voltar a essas fontes
é algo que nem precisamos entender.” [1]
A Herança trata-se, em princípio, do Dasein abstraindo aquilo que está sob o véu do simulacro
simbólico; a própria compreensão da realidade simbólica admite a existência de um símbolo
primordial que se oculta através dos mais diversos símbolos captados pelo Ser [2]. Em suma, o
fator de universalidade do Símbolo não anula a Tradição enquanto realidade temporal em que
decorrem ambos; por mais que os componentes simbólicos possuem uma universalidade nítida,
convém definir que não há Tradição sem os símbolos do passado; no entanto, a veracidade de tal
Tradição não se dá pelo fato de sua existência remota, mas por sua causa ativa no decorrer do
tempo. Eis a diferença entre a Tradição — viva, ativa, estática e dinâmica — e uma
pseudorealidade que buscam afirmar como tradição — um retorno romântico ao passado,
nostalgia vitoriana.
O ponto de partida da Tradição é: da mesma maneira que possui seu aspecto universal, há
um zeitgeist que a norteia e isso pode se manifestar de uma forma totalmente diferente em
tempos em que a Tradição se tornou obsoleta na cosmovisão dominante (como é o caso do
Ocidente).
Partindo de um exemplo bem simples: o Latim. Durante séculos foi uma língua tanto litúrgica da
Igreja Romana como acadêmica. Hoje, no entanto, toda tradição acadêmica europeia ruiu e a
religião europeia perdeu totalmente o espaço ativo na sociedade. Faria sentido um movimento
“tradicional” para restaurar o Latim? A pergunta responde por si só. O que quero dizer é que não
há como restaurar qualquer Tradição apenas revivendo fragmentos que pertenceram à uma
época norteada por uma Tradição — é a Tradição integral ou nada. O século atual presencia um
declínio colossal na Igreja Romana e o Liberalismo como agente hegemônico; por acaso a
restauração da Polifonia da Escola de Roma resolveria o problema? Eis a chave para a nossa
reflexão.
É digno admirarmos da grande tradição musical europeia, no entanto, os grandes clássicos
eruditos jamais voltarão, assim como a cultura que norteava essa estrutura intelectual da época.
Como a Tradição vive, basta soprarmos a brasa com maior firmeza a fim de que as chamas
possam se expandir, e buscar um retorno para solucionar o problema é como jogar água ao fogo:
você não volta aos primórdios da Tradição, apenas retoma o problema do princípio em que ele
começou, o que se pode esperar disso não é apenas uma decadência geral, mas a própria
extinção desse corpo tradicional, já que o mesmo será desacreditado pelo seu fracasso,
frustrando até mesmo os mancebos com o coração mais puro.
Tudo isso nos faz pensar em uma nova Arte para o futuro, e de que maneira isso está emergindo
nas últimas décadas. Destaco aqui dois grandes setores que já mostraram sua superioridade no
que diz respeito às virtudes a serem cultivadas na Música: Metal e o Neofolk/Martial Industrial.
Há muito tempo sou aficionado pela música da extinta banda de Portland, Agalloch, e dos bávaros
do Empyrium. O que se nota em muito específico dentro de suas músicas são as belíssimas letras
em relação à Natureza em todos os seus aspectos: a neve, a floresta, o sol, a escuridão; e tudo o
que vem com ela: a tristeza, esperança e o Divino. Note que quando você arranha o verniz da
temática lírica, acaba percebendo que não há o erro crasso de naturalizar a Natureza, como fazem
os naturalistas; Natureza sempre é compreendida no meu mais íntimo e profundo significado,
ultrapassando as fronteiras do mundo sensível.
É muito discutido o papel inquestionável do Black Metal, deixaremos de lado por ora, já que certa
vertente do Metal muitas vezes acaba passando despercebida: o Metal Progressivo.
É sabido por muitos que o chamado Prog possui certo hype de música intelectual desde sua
ascensão, no entanto, é preciso saber onde se pisa exatamente para não cair nos vícios de
nostalgia. O Metal Progressivo em si, possui um corpo fantástico no que diz respeito às letras, seu
significado e sua harmonia bem composta; muito se fala de serem os herdeiros da antiga música
europeia, algo um tanto arriscado. Se tiver algo problemático entre os fãs de tal gênero no que diz
respeito à cosmovisão tradicional é exatamente esse pensamento de volta ao passado; e a técnica
é a principal justificativa. Entre a metade e o fim da era barroca em diante há uma visão de músico
um tanto problemática que assola até os dias de hoje: a virtuosidade. A própria virtuosidade, na
medida em que se perde o senso criativo em detrimento da técnica, acaba tornando a música
uma mera estrutura musical articulada e sem alma.
Qual a diferença entre a Lisztomania e a Beatlemania? O ideal burguês de virtuosidade é o que
moldou e deu fundamento ao músico do Liberalismo: autossuficiente, individualista e pop; a
gênese a música que se tornaria obsoleta no Liberalismo possui suas raízes em uma enorme
profundidade, muito além de poucas décadas.
Longe de fazer qualquer apologia contra (já que sou um enorme apreciador da música europeia e
do Metal Progressivo), o que está exposto não é nada senão uma separação a respeito de uma
nova gênese musical; é preciso separar o joio do trigo na hora, para que a virtude não se torne
vício, já que o retorno à técnica, assim como mencionamos, é uma volta ao início do problema, e
não a transfiguração da música per si.
“Quando tudo estiver murcho e estilhaçado
E tudo tiver desaparecido e caído
Estas grandes portas de madeira devem permanecer
fechadas…” [3]
O que formará uma grande aurora musical no futuro são exatamente os grupos que não apenas
compreendem a Tradição em seus mais íntimos fundamentos, mas que dão ao ouvinte a enorme
capacidade de uma reflexão íntima do Ser. A terra, sangue e a tradição como fundamento da
música nos são passado pelos chilenos do Uaral e seu grande sucessor Imbaru; as antigas
tradições folclóricas em Empyrium e Agalloch; a profunda introspecção em Death in June; a
poderosa aura espiritual no Current 93; o heroísmo do Rome; o declínio e ascensão em Sol
Invictus; os mistérios inefáveis do Blood Axis e o espírito divino que paira as montanhas nos
álbuns do Basarabian Hills. E muitos outros exemplos!
É muito óbvio perceber que canções como “Rundgang um die transzendentale Säule der
Singularität” do Burzum estão num nível um tanto mais elevado do que qualquer coisa que temos
hoje para hoje; podemos encontrar inúmeras obras magníficas do nosso glorioso passado, no
entanto, para os dramáticos tempos atuais não serão de muita ajuda.
Em um futuro distante, a música será determinada não pelos padrões de individualismo e valores
efêmeros da falida cultura pop, mas dos grandes ideais que transpassam eras; não será uma volta
romântica ao passado, mas uma transcendência à Era dos Heróis em que os grandes homens
serão notáveis não por seu rigor liberal, mas por nobre Arte, fruto das mais profundas reflexões
do Ser.
Notas
[1] HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 10ª ed. Editora Vozes, 2015. 600 p. ISBN 978-85-32632845.
[2] SPENGLER, Oswald. A Decadência do Ocidente: Esboço de uma Morfologia da História
Universal. 4ª ed. Forense Universitária, 2013. 426 p. ISBN 978-85-30935887
[3] “I Am The Wooden Doors (The Mantle)” Agalloch. Composição de John Haughm