A Rússia só pode ganhar

Tradução Guilherme Fernandes
Esta entrevista com Alexander Dugin foi feita por jornalistas italianos e reflete sobre os objetivos e o futuro da intervenção russa na Ucrânia.
– Professor Dugin, muitos na Europa começaram a falar sobre a Segunda Guerra Mundial. Você acha que a Rússia está pronta para confrontar diretamente a OTAN ou existem linhas vermelhas que você não vai cruzar em sua intervenção na Ucrânia?
– O cerne da questão é que agora que a Rússia lançou a operação militar especial, ela só pode sair vitoriosa dela. Podemos dizer que os objetivos concretos consistiriam em uma dominação máxima de todo o território da Ucrânia e um domínio mínimo de toda a região de Novorossiya que vai de Odessa a Kharkiv: a libertação de um território muito menor não poderia ser considerada uma vitória, trata-se de “ser ou não ser”. Agora, o Ocidente tem prioridades muito diferentes, porque perder toda a Ucrânia – que levou quase 30 anos para dominar e subordinar aos seus interesses – é certamente um retrocesso, mas não um golpe mortal. Além disso, o Ocidente conseguiu obter com tudo isso um verdadeiro inimigo que lhe permite resolver muitos problemas, incluindo a consolidação da OTAN, o fortalecimento da influência dos Estados Unidos sobre a Europa, relançar a globalização e até mesmo salvar a hegemonia americana. Na verdade, mesmo que o Ocidente sofra uma derrota na Ucrânia, eles serão capazes de empurrar todos os tipos de projetos para a frente. Mas isso não se aplica à Rússia: caso não possamos alcançar nossos objetivos, então receberemos um golpe fatal. A Rússia cruzou o Rubicão e isso implica que nossa única maneira de continuar existindo é alcançar a Vitória.
É por isso que eu acho que a Rússia fará tudo ao seu alcance para vencer e isso inclui a possibilidade de uma guerra nuclear. O Ocidente pode resolver as coisas de muitas outras maneiras, deixando de lado o confronto direto e o suicídio nuclear da humanidade. A Rússia se consideraria em guerra com a OTAN no caso de um contingente militar de países pertencentes a essa aliança (como a Polônia ou a Romênia) entrar na Ucrânia: esse seria o início da Segunda Guerra Mundial. Mas isso não depende da Rússia, mas do Ocidente. Se o Ocidente decidir iniciar a Segunda Guerra Mundial, ou seja, enviar um contingente militar ou se envolver diretamente no conflito de uma forma ou de outra, então podemos dizer claramente que este conflito terá começado. No entanto, se tudo o que o Ocidente faz é enviar ajuda a Kiev, a guerra não vai eclodir entre os dois competidores.
Quando acha que a Rússia vai parar a ofensiva? Existe um número de territórios ou espaço que a Rússia deseja ocupar e do qual não passará mais?
– Acho que já respondi a essa pergunta: há uma quantidade máxima e uma quantidade mínima, mas esta última depende dos resultados da guerra. Penso que o governo russo desde o início pretendia dominar o máximo de território possível desde que lançou a operação militar especial e é por isso que houve ataques em áreas ocidentais da Ucrânia como Lvov. No entanto, para nós também seria uma vitória simplesmente libertar os territórios de Novorossiya como Kharkiv, o Donbass, a região de Kherson, Zaporizhia, Nikolayev, Dnipropetrovsk e Odessa.
Não acha que essas diferenças entre a Rússia e a Europa poderiam ser resolvidas por meio de uma conferência internacional?
– Creio que as relações diplomáticas entre a Rússia e a Europa serão restauradas sob um novo formato, uma vez que a operação militar especial culmine em nossa vitória, de modo que qualquer diálogo antes de chegarmos a este ponto não tem sentido, especialmente porque se baseia na cessação das hostilidades. A Rússia não vai parar até conseguir a vitória, depois disso será possível negociar.
– Você não considera que a Rússia faz parte da Europa e que sua cultura pertence à nossa área de influência? O que restará de tudo isso quando a guerra acabar? Será que o rompimento de todos os nossos laços culturais não será apenas uma perda para a Europa, mas para o povo russo?
– A cultura europeia contemporânea, baseada no cancelamento, LGBT, transhumanismo e pós-modernismo, não tem nada a ver com a Europa real e foi construída sobre uma negação de suas próprias raízes. O Ocidente é uma civilização decadente que amaldiçoou suas próprias fundações e agora está morrendo, por isso acho que é bom que a Rússia esteja cortando todas as relações com esta pilha de resíduos radioativos que a Europa se tornou. Além disso, a Rússia nunca fez parte da Europa antes ou depois dos Urais, somos uma civilização distinta e completamente autônoma de caráter ortodoxo e eurasiano. O colapso das nossas relações só afetará os europeus, porque a Rússia tem fundamentos que se assemelham mais à Europa real do que à paródia que a União Europeia liberal, atlântica e decadente construiu dela.
O que você vê como o futuro da Nova Ordem Mundial e qual o papel da democracia nela?
– A Nova Ordem Mundial é a fase final do liberalismo, ou seja, o momento em que o liberalismo se torna um sistema totalitário e todas as formas de partição democrática são suprimidas em favor da criação de um Governo Mundial transnacional que dita quais são os valores, normas e regras que a humanidade deve seguir, determinar o que é permitido e o que é proibido sem levar em conta as diferenças entre diferentes civilizações e culturas. Tudo isso nos leva a considerar que o NOM pretende criar um campo de concentração global onde a democracia desaparecerá. A Rússia também não terá um futuro, pois continua a defender sua soberania, identidade e seu próprio sistema de valores que não tem nada a ver com as normas que o globalismo criou. É por isso que a Rússia luta pela multipolaridade, porque não considera que há uma única civilização (liberal, Fukuyama), mas várias (Huntington).
Você não considera que a Rússia, que tem um território muito grande, poderia ser economicamente engolida pela China?
Eu acho que não. A Rússia é uma grande potência não só pela quantidade de território e recursos que tem, mas também por causa de seu armamento e vontade política. É claro que, economicamente, somos muito inferiores à China, mas temos outras vantagens estratégicas que falta a última. Por outro lado, não considero a China uma ameaça à Rússia, mas aliada na nossa luta contra a hegemonia ocidental e na criação de um mundo multipolar. A China não pode manter sua soberania sem a Rússia e a Rússia não pode permanecer soberana – especialmente agora – sem o apoio da China.
O que você acha das ideias do Papa Francisco, um homem independente da influência dos EUA, e sua negação da “guerra justa” em favor do diálogo?
– O Papa Francisco é a mais alta autoridade de um ramo do cristianismo que desde a Idade Média não tem autoridade sobre os ortodoxos. Além disso, o papado tem influência mínima dentro do Ocidente anti-cristão de hoje e foi reduzido a uma função humanitária sem sentido e sem importância, por isso não nos importamos com suas opiniões sobre guerras “justas” e “injustas”. Além disso, seu apelo para negociar com uma civilização que para os ortodoxos não é nada além da encarnação do Anticristo, sendo incapaz de entender nossa posição, simplesmente não tem peso em nossos olhos. Só devemos ver como os católicos apoiaram a russofobia nas fileiras das Uniates ucranianas, sendo um dos fatores que desencadearam o conflito atual.
– Lev Tolstoy é um escritor russo amplamente lido e admirado na Europa, sendo o precursor da não-violência defendida por Gandhi. O que acha de Tolstoi e seu legado?
– Tolstoi não é muito popular na Rússia contemporânea. Seus apelos para rejeitar a Igreja e a monarquia causaram sofrimento terrível ao mundo russo durante o século XX, por isso ele é muito desacreditado aos olhos do povo. Citá-lo é contraproducente. Pessoalmente, eu acho que ele é um pensador muito interessante, especialmente em seus escritos sobre heresias russas e seitas populares. No entanto, isso faz parte da minha pesquisa acadêmica. Por outro lado, acredito que o pacifismo extremo nada mais é do que uma justificativa para a guerra total. Dostoievsky foi quem previu a consequência final de todas essas ideias; ele, ao contrário de Tolstoi, sempre foi um místico e defensor do patriotismo radical: ele é um dos guias mais importantes de nossa sociedade e talvez a expressão de nossos Logos. Sua influência pode ser vista no número de séries e filmes que adaptaram suas obras, o que contrasta com o desinteresse geral em Tolstoi.